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sábado, 22 de março de 2014

Capitães da Areia

 No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio. Ficou parado olhando pirulito, que rezava concentrado. No rosto do que rezava ia uma exaltação, qualquer coisa que ao primeiro momento Sem-Pernas pensou que fosse alegria ou felicidade. Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma expressão que ele não sabia definir. E pensou, contraindo o seu rosto pequeno, que talvez por isso ele nunca tivesse pensado em rezar, de se voltar para o céu de que tanto falava o padre José Pedro quando vinha vê-los. O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono que qualquer carinho, as falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no céu, nos quadros de santos, na flores muchas que trazia para a Nossa Senhora das Sete Dores, como um namorado romântico dos bairros chiques da cidade traz para aquela a quem ama com intenção de casamento. Mas Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno. Não queria o que tinha Pirulito, o rosto cheio de exaltação. Queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém com muito amor que o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seria sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passava, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores.  

-Sem-Pernas (Capitães da Areia)

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